Um Livro que é um curso de ciências sociais
Alcir Santos de Oliveira
Não há o que discutir, uma senhora aula de história! A autora foi buscar, na trajetória dos seus ancestrais, um ótimo “gancho” para mostrar ao leitor, entre outras coisas, como funcionava o processo de captura, transporte e comercialização de pessoas trazidas de África para o Brasil, e aqui vendidas e escravizadas. Até aí, pouca ou nenhuma novidade, embora tenhamos de reconhecer que é sempre importante reiterar essa história, não só para relembrar, mas para que leitores ainda desavisados dela tomem conhecimento. Fato é que o texto, ambientado na Bahia, entre o Recôncavo e Salvador, oferece muito mais, bem mais...
O diferencial deste livro, mistura de romance histórico e biográfico, é a abordagem de toda uma gama de assuntos, todos eles decorrentes do processo de escravização, inclusive fatos pouco conhecidos como, por exemplo, um outro lado da decantada Lei do Ventre Livre, pouco conhecido, ou explorado, até pelos historiadores, que a autora intitula de “Lei dos Ingênuos” já que, na prática, não tinha como funcionar. Com personagens muito bem construídos e estruturados, a exemplo de Firmino -- trazido ainda criança para a Bahia e acaba, dentre outras muitas peripécias, lutando, em troca da libertação, no genocídio que foi a Guerra do Paraguai – desenvolve um sólido enredo, abordando, a par da história de vida dos escravizados, o processo de decadência do ciclo da cana de açúcar, à época o sustentáculo da economia baiana.
Encontramos aqui um curioso paralelo. Em Fogo Morto, Lins do Rêgo mostra esse processo pelo ângulo dos senhores; aqui Eliana aborda pelo lado inverso, o dos escravizados. Portanto, a autora não se limita a desenvolver um enredo, faz, também, valiosas análises sócio-econômicas e políticas, brindando o leitor com algo mais que a história dos seus antepassados.
Outro aspecto interessante diz respeito, a história política do Brasil, dominado, desde sempre, pelos mesmos. Eliana comprova esta tese. Os sobrenomes, extensos e pomposos, de condes, marqueses, duques e barões da monocultura açucareira, estão presentes na atualidade, ocupando postos de destaque nos diversos setores da sociedade, especialmente em cargos públicos. Quem quiser comprovar o que se afirma vai ter de ler o livro. Aí, especialmente se morar na Bahia, vai encontrar uma série de sobrenomes conhecidos.
Água de Barrela oferece mais, bem mais, se, de um lado, com a Lei Áurea, os oligarcas da economia açucareira viram seus empreendimentos e fortunas fenecerem, os “libertos” se viram perdidos, pois não estavam preparados, em nenhum aspecto, para a nova vida. Alguns invadiram as cidades e tiveram de enfrentar a má vontade das autoridades e a violência de policiais despreparados; outros conseguiram pequenos pedaços de terras, nas franjas dos latifúndios onde se dedicaram ao plantio de culturas de ciclo curto, produtos alimentares; mas o fato é que tiveram, todos, de se reinventar, no limite da sobrevivência. Uns como vendedores ambulantes, capoeiras, doceiros etc, outros na agricultura de subsistência. Ainda assim muitos optaram por permanecer a serviço dos seus antigos senhores, fazendo serviços domésticos como cozinhar, lavar, arrumar, em troco de míseros salários, num tempo em que não existia CLT, nem 13º, férias e FGTS.
Em suma, a autora carioca, mas com raízes assentadas no Recôncavo, ainda amargando o processo de decadência, fez do seu romance um clássico do nosso tempo. Uma aula de história e sociologia, sem falar dos aspectos econômicos explorados.
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