Farenheit 451, de Ray Bradbury (264 pp., tradução Cid Knipel), é de fato uma das maiores obras-primas de ficção científica de todos os tempos. Ou seria, se se tratasse realmente de ficção científica. Fahrenheit 451 é, na verdade, uma obra de ficção política, uma distopia, ou antiutopia, na linha e na linhagem do 1984 de Orwell e do Admirável mundo novo de Huxley (com os quais, não por acaso, forma a grande tríade das distopias literárias do século XX). A presente reedição pelo selo Globo de Bolso, além do suplemento de leitura didático que marca a coleção, conta ainda com um posfácio do próprio Bradbury, em que ele narra de forma bem-humorada as condições em que o livro foi escrito.
451 graus Farenheit, ou 233 graus Celsius, é a temperatura de combustão do papel comum. Logo, dos livros. E os livros são os instrumentos que “incendeiam” as ideias. A sociedade de Farenheit 451, porém, é uma sociedade que preza a paz acima de tudo.
O caminho da paz, para ela, passa por dois elementos fundamentais: um, material, o outro, espiritual. Materialmente, trata-se de suprir as necessidades básicas dos cidadãos. Nessa sociedade afluente, moderna e organizada, todos vivem em casas confortáveis, vestem-se e se alimentam satisfatoriamente, têm empregos e contam, para se entreter, com úbiquas telas de TV, por onde participam interminavelmente de programas interativos (o livro foi escrito nos anos 40, o que o torna terrivelmente premonitório). Porém a satisfação material não garante a paz social se houver insatisfação espiritual. Isto é, se existirem a imaginação, a fantasia, os questionamentos, as alternativas, as dúvidas. Tudo aquilo de que os livros são depositários. A história, a literatura, a filosofia, a poesia, a religião, a política, as biografias, tornam-se uma ameaça à uniformidade passiva e satisfeita. Os livros são, portanto, todos proibidos.
Porém proibir os livros, por si só, não elimina os livros já publicados. Para isso há os bombeiros, agentes especializados em localizar livros escondidos e em queimá-los in loco (não há necessidade de agentes para combater incêndios, pois as casas, ao contrário das mentes, são então à prova de fogo). Felizmente, como demonstra o surpreendente final, bombeiros com lança-chamas não podem queimar a memória.
Farenheit 451, que é afinal uma história de amor, ou melhor, de amores (o amor pelos livros e o amor de um bombeiro, Montag, pela bela, delicada e delicadamente insatisfeita Clarisse), foi filmado de maneira magistral por François Truffaut em 1966.
Resta acrescentar outra diferença entre as obras de Bradbury e a ficção científica padrão: Bradbury escreve melhor do que seus pares, com mais recursos de imagens e maior poder de descrição, ao mesmo tempo em que mantém a precisão vocabular e a objetividade gramatical típicas da ficção americana moderna, como se constata já na abertura do livro, reproduzida a seguir.