Uma mulher decapitada, estrangulada, esfaqueada e sedada (não necessariamente nesta ordem) é o ponto de partida do romance policial "Possessões", terceira experiência da intelectual búlgara Julia Kristeva como ficcionista. Desde os anos 60 que o mundo acadêmico tem admirado os trabalhos da autora nos campos da psicanálise, filosofia, semiologia, lingüística e teoria literária. Agora ela convida tanto o grande público quanto os estudiosos a ver suas aclamadas teses servirem de estrutura para uma trama de mistério.
Possessões traz de volta Stéphanie Delacour, jornalista parisiense e dublê de detetive que já aparecia no romance anterior de Julia Kristeva, O velho e os lobos. A personagem, alter ego da autora, retorna à cidade fictícia de Santa Bárbara para participar de uma pequena festa na casa da tradutora Gloria Harrison. Dias depois, ela é convocada a prestar depoimento às autoridades locais: Stéphanie e os demais convidados daquela noite foram as últimas pessoas a ver Gloria com vida. O corpo da anfitriã fora encontrado sem a cabeça e com uma perfuração no peito.
Paralelamente às investigações do delegado Northrop Rilsky, a jornalista tenta chegar a suas próprias conclusões sobre o crime. É longo o caminho até a descoberta do nome do assassino e de seus motivos. Mas, no fim, o leitor é brindado com uma resolução tão surpreendente quanto complexa. Fora o prazer de esbarrar, aqui e ali, em citações a Proust, Dostoievski, Stendhal, Sartre e outros clássicos. Ou de ter o cenário da degolação descrito com base em obras de arte de Rodin, Caravaggio, Degas e dos gregos antigos. Ou, ainda, de contar com referências as composições de Bach para melhor compreender o estado de espírito de um personagem.
Como Kristeva é uma das pensadoras mais respeitadas da atualidade, autora de algumas teorias psicanalíticas que questionam o legado de Freud, a construção dos perfis psicológicos dos personagens não poderia deixar de ser um dos pontos mais saborosos de "Possessões". O crime em questão só faz sentido quando analisado à luz da psicanálise. E Stéphanie Delacour está lá para explicar por quê.
Ao fã de literatura policial, o livro reserva um estilo totalmente diferente do da maioria dos títulos do gênero, sugerindo uma experiência quase filosófica, pois exige um envolvimento mais profundo. E aos iniciados no pensamento de Kristeva, a escritora oferece uma história que mostra serem plausíveis suas teorias acerca da mente, da vida em sociedade e do mundo atual. Muitos de seus temas de estudo mais famosos ressurgem nesta ficção: a maternidade; a idéia de que o papel da mãe é mais marcante que o do pai na construção do sujeito; a relegação da feminilidade a um segundo plano; a máxima sagrada de que "No princípio, havia o verbo"; a depressão; a abjeção; a importância dos símbolos; o papel da linguagem; o autoconhecimento como meio de compreender melhor a relação com o outro.